(FOLHAPRESS) – Ao menos no papel, a animação “O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim” tinha tudo para ser um mero pastiche. O uso das mesmas referências visuais e até de parte da mesma trilha sonora da cultuada trilogia dirigida por Peter Jackson sugeria que aquilo talvez não passasse de um caça-níqueis pouco inspirado.
Nada poderia estar mais longe da verdade. Apesar de algumas estranhezas na execução, o anime dirigido por Kenji Kamiyama tem o ímpeto narrativo trágico das sagas escandinavas, sem deixar de lado os lampejos de encantamento mítico que caracterizam o universo do escritor britânico J.R.R. Tolkien.
Tolkien, estudioso da literatura heroica da Europa medieval, certa vez comparou o poema em inglês antigo “Beowulf” a uma amarga cerveja servida num funeral, com o sabor da morte. Esse retrogosto -para manter a analogia etílica- é bastante forte em “A Guerra dos Rohirrim”, eliminando qualquer preconceito de que a técnica de animação japonesa ou a ambientação seriam coisa de criança.
A inspiração para o anime vem dos apêndices escritos por Tolkien para “O Senhor dos Anéis”. Trata-se de uma monumental estrutura pseudo-histórica na qual ele registra milhares de anos de dinastias e conflitos de seu mundo imaginado, no continente da Terra-Média.
Em um desses anais, narrado em poucas páginas, temos a história do rei Helm Mão-de-Martelo. Ele governa os Rohirrim do título. O nome, numa das línguas criadas por Tolkien, significa “Povo dos Senhores de Cavalos”, por causa da cultura fortemente equestre dessa gente.
Helm é dono de força física prodigiosa -afinal, ninguém ganha um epíteto como o seu à toa-, valente e generoso, mas também irascível.
O péssimo gênio do rei o leva a ferir mortalmente um de seus nobres, Freca, que o tinha insultado e exigido que a filha de Helm se casasse com seu filho, chamado Wulf. Para complicar a situação, Freca descende em parte de um grupo étnico que tinha perdido parte de suas terras com a ascensão política dos Rohirrim na região.
A morte dele desencadeia uma rebelião desse povo subalterno e um conflito impiedoso que se arrasta durante o pior inverno a afetar a Terra-Média em séculos.
As consequências trágicas da situação e a luta dos Rohirrim pela sobrevivência são vistas, no anime, da perspectiva de Héra, a jovem filha de Helm que foi o pomo da discórdia entre o rei e Freca. O nome da personagem e sua personalidade aventuresca não aparecem no livro de Tolkien, mas se encaixam bem nas descrições da cultura imaginária dos Rohirrim, caracterizada pela presença das “donzelas-do-escudo”, mulheres que também eram treinadas para o combate.
A situação em que Héra, sua família e seus inimigos se encontram abrange os temas que a antiga literatura do norte da Europa examinava com mais profundidade: as exigências da honra e dos laços de parentesco, os perigos do orgulho, da inflexibilidade e da violência.
Ainda o que Tolkien chamava de “teoria da coragem do Norte”: a ideia de que, num combate, a vitória é secundária, porque a forma perfeita de resistência é aquela que persiste mesmo quando não há esperança.
Diante de temas tão altissonantes, é louvável o esforço do anime para deixar de lado o realismo e abraçar um tipo de ação que beira o mítico. O contraste entre a animação tradicional e bidimensional dos personagens e os cenários mais tridimensionais e grandiosos, aparentemente criados por meios computacionais, parece apontar nessa direção também, embora o resultado às vezes traga certa estranheza.
É possível que o conhecimento prévio dos filmes da década de 2000 ou da obra de Tolkien seja necessário para apreciar as nuances da história. Mas a força emocional do anime, com sua mistura peculiar de desespero e esperança, não precisa de pré-requisitos para tocar quem está assistindo.
O SENHOR DO ANÉIS: A GUERRA DOS ROHIRRIM
Avaliação Muito bom
Onde Nos cinemas
Classificação 14 anos
Produção Estados Unidos, Japão, 2024
Direção Kenji Kamiyama