- Idade Média e Tribunais da Inquisição – Em muitos casos, hereges, criminosos e inimigos da igreja eram expostos ao escárnio público antes de punições mais severas, como açoites ou execução.
- Revolução Francesa – Durante o período do Terror, opositores políticos e aristocratas eram muitas vezes ridicularizados e humilhados antes de serem guilhotinados.
- Escravidão e Comércio de Escravos – Em algumas culturas, especialmente no período da escravidão transatlântica, pessoas capturadas eram acorrentadas e expostas ao público antes de serem vendidas.
- Execuções públicas e punições no Brasil colonial – Condenados, especialmente escravizados fugitivos ou rebeldes, eram submetidos ao pelourinho, onde eram açoitados e ridicularizados publicamente.
- Justiça Popular e Linchamentos – Em algumas sociedades, mesmo nos tempos modernos, criminosos capturados por multidões enfurecidas são expostos, espancados e humilhados antes da chegada da polícia ou de execuções extrajudiciais.
Essa cena reflete um comportamento coletivo que mistura justiça com espetáculo, em que a punição se torna uma forma de entretenimento e reafirmação do poder da sociedade sobre o indivíduo.
- Walk of Shame – Cersei Lannister (Game of Thrones)
Cersei Lannister, uma das personagens mais poderosas de Game of Thrones, sofre uma humilhação pública brutal ao ser forçada a atravessar Porto Real nua, com os cabelos cortados, enquanto a população a insulta e joga restos de comida e fezes nela. Essa punição não é apenas um castigo religioso imposto pelo Alto Pardal e a Fé Militante, mas também uma demonstração de poder: mostrar que até mesmo a rainha pode ser reduzida a nada perante o julgamento do povo. Esse evento ilustra como a humilhação pública pode servir como um instrumento de dominação, onde a moralidade coletiva é usada para esmagar a dignidade do indivíduo.
- William Wallace em *Coração Valente
O herói escocês William Wallace, após lutar contra a opressão inglesa, é capturado e condenado por traição. Ele não apenas é acorrentado e exibido ao povo, mas sofre torturas brutais antes de sua execução, em uma tentativa de desmoralizar sua luta e enviar uma mensagem ao povo escocês. O mais impactante é que, mesmo diante da dor e da morte iminente, ele recusa a submissão e grita “Liberdade!” antes de morrer. Essa cena reforça a ideia de que a humilhação pública também pode ter o efeito contrário: transformar a vítima em mártir e inspirar resistência.
- Joana d’Arc
A jovem camponesa que liderou tropas francesas contra os ingleses foi capturada, julgada por heresia e bruxaria, e queimada viva em praça pública. O processo todo foi um espetáculo, desde seu julgamento injusto até sua execução, com o propósito de desmoralizar sua figura e consolidar o domínio inglês sobre a França. No entanto, sua morte teve o efeito oposto: ela se tornou um símbolo de resistência e foi canonizada séculos depois.
- Quasímodo em O Corcunda de Notre Dame
Na versão da Disney e, principalmente, no romance original de Victor Hugo, Quasímodo é capturado, amarrado e chicoteado em praça pública enquanto a população zombava dele. A cena é emblemática porque mostra como a sociedade pode ser cruel com aqueles que são considerados “diferentes”. Ele clama por ajuda, mas ninguém o socorre, até que Esmeralda intervém. Esse momento serve para enfatizar a hipocrisia da sociedade e o abuso de poder por parte das autoridades.
- Katniss Everdeen em Jogos Vorazes: Em Chamas
Embora Katniss não passe exatamente por um espetáculo de humilhação pública no sentido tradicional, ela é forçada a participar da Turnê da Vitória, onde precisa agir como uma marionete do governo, fingindo felicidade e submissão enquanto os rebeldes são punidos e reprimidos. Sua jornada reflete como um governo autoritário usa o espetáculo público para manipular a população e eliminar qualquer ameaça. O próprio conceito dos Jogos Vorazes é uma forma de punição pública ritualística, onde tributos são escolhidos para lutar até a morte como uma demonstração de poder do Estado sobre os distritos.
Reflexão sobre o conceito da humilhação pública
Todos esses exemplos mostram que a humilhação pública não é apenas um castigo, mas também um instrumento político e social. Ela pode servir para desmoralizar alguém, reforçar o poder de uma instituição ou até mesmo, em certos casos, transformar a vítima em mártir e símbolo de resistência. A exposição ao ridículo, os insultos e a violência simbólica (ou real) são usados para consolidar a autoridade sobre o corpo e a mente do indivíduo.
Curiosamente, esses momentos de vergonha e escárnio muitas vezes se tornam os catalisadores de grandes mudanças na história — seja o levante do povo escocês após a morte de Wallace, a canonização de Joana d’Arc, ou a rebelião liderada por Katniss.
A relação entre a humilhação pública histórica e o cancelamento digital é extremamente relevante. A internet, com sua velocidade e alcance, amplificou algo que sempre existiu: a tendência humana de julgar e punir sem um devido processo. A diferença é que, na era digital, o dano é imediato e praticamente irreversível.
- O Cancelamento como a Nova Forca Pública
O fenômeno do cancelamento funciona como uma versão moderna dos pelourinhos medievais ou das execuções públicas. Quando alguém é acusado (muitas vezes sem provas concretas), a internet se torna a praça pública onde a pessoa é acorrentada digitalmente. As vaias, os insultos e os “legumes arremessados” se traduzem em linchamentos virtuais, perda de contratos, destruição de reputações e, às vezes, impactos emocionais devastadores. O problema é que, mesmo quando a inocência é comprovada, a reparação raramente acontece.
Como no caso de Cersei Lannister, que teve de fazer seu “caminho da vergonha”, as pessoas canceladas não têm como apagar a marca que o escárnio deixou. Elas podem até reconstruir suas carreiras, mas a sombra da acusação nunca desaparece completamente. O julgamento coletivo na internet segue a lógica de uma turba medieval: a punição vem antes da verdade.
- O Caso de Johnny Depp: O Cancelamento Antes da Justiça
O caso do ator Johnny Depp é um dos mais emblemáticos da cultura do cancelamento moderno. Em 2018, sua então esposa, Amber Heard, publicou um artigo no Washington Post insinuando que ele era um agressor doméstico. Ainda que ela não tenha citado seu nome diretamente, o impacto foi imediato:
– Depp foi cancelado pela mídia e por grandes estúdios de Hollywood.
– Perdeu papéis icônicos, como o Capitão Jack Sparrow em Piratas do Caribe e sua participação em Animais Fantásticos.
– Foi tratado como culpado pela opinião pública sem um julgamento justo.
Porém, anos depois, o julgamento revelou que Amber Heard havia manipulado a narrativa e que ela mesma havia cometido abusos. Mensagens, gravações e testemunhos expuseram que Depp era a verdadeira vítima. Em 2022, ele venceu o processo de difamação contra Heard, provando na Justiça que as acusações contra ele eram falsas.
No entanto, a reparação foi parcial e tardia:
– Depp nunca recuperou os papéis que perdeu.
– Sua reputação, embora melhorada, ficou marcada pelo escândalo.
– Enquanto ele passou anos exilado de Hollywood, Heard continuou trabalhando normalmente.
A questão crucial é: quem devolve ao cancelado o tempo e a dignidade perdidos? Como na história de Joana d’Arc ou William Wallace, o reconhecimento da verdade vem tarde demais para evitar o sofrimento.
Conclusão: A Nova Inquisição Digital
O cancelamento na internet opera como uma inversão do ônus da prova: primeiro se condena, depois se investiga. Na maioria dos casos, a mera acusação já equivale a uma sentença, independentemente das provas.
A solução para isso não é simples, mas envolve:
- Maior responsabilidade na disseminação de acusações – O público deve ter mais cautela antes de julgar alguém com base apenas em manchetes e tweets virais.
- Mecanismos de reparação de imagem – Se uma pessoa for inocentada, as empresas, a mídia e os influenciadores que ajudaram no cancelamento deveriam ser igualmente responsáveis por restaurar sua reputação.
- Separar Justiça de Tribunal da Internet – Crimes devem ser investigados pelos órgãos competentes, não pelo Twitter ou Instagram.
A cultura do cancelamento é a moderna versão das execuções públicas – e como na história, a multidão raramente olha para trás para ver se condenou um culpado ou um inocente.