BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A decisão deste domingo (15) do ministro Flávio Dino, do STF (Supremo Tribunal Federal), de que a Lei da Anistia da ditadura não vale para ocultação de cadáveres, recebeu elogios das presidentes das comissões sobre Mortos e Desaparecidos e da Anistia.
A presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, Eugênia Gonzaga, classificou o entendimento de Dino como um “divisor de águas”.
Para ela, o momento é decisivo para o Justiça decidir “de que lado está”. Oficialmente, há 170 desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985). Mas, segundo Eugênia, o número de vítimas da repressão do Estado naquelas décadas pode girar em torno de 10 mil, se consideradas camponeses e indígenas assassinados, entre outros grupos de não militantes políticos.
“Ótima decisão, [um] divisor de águas no STF. Porque, pela primeira vez, um ministro fala nesses termos. Estamos num momento muito propício, positivo e decisivo para que a Justiça diga de que lado está. É ou não a favor da justiça de transição, se vai continuar pactuando com impunidade ou não”, disse à reportagem.
Apesar do elogio ao magistrado, Eugênia chama a decisão de conservadora. “Fala o óbvio, que crimes em andamento de ocultação não estão sujeitos à lei. Há uma tese que diz que crimes contra a humanidade, por definição do direito internacional, não prescrevem. É com base nesse entendimento que Chile e Argentina processam os autores [dos crimes]”.
Eugênia, que é procuradora da República, defende que tortura, estupro e homicídio são graves lesões aos direitos humanos, para os quais não cabe anistia.
Segundo o entendimento de Dino, o crime de ocultação de cadáveres é permanente, porque “quem oculta e mantém oculto algo prolonga a ação até que o fato se torne conhecido”.
A posição do ministro foi manifestada em uma decisão publicada neste domingo. Dino é o relator de um recurso do MPF (Ministério Público Federal) contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que havia permitido que militares acusados de ocultar cadáveres durante a ditadura militar fossem beneficiados pela Lei da Anistia, de 1979.
A decisão de Dino define que o caso deve ter repercussão geral -instrumento pelo qual o Supremo fixa um entendimento amplo sobre o assunto. O caso será analisado pelos demais magistrados da corte, no plenário virtual do STF.
Assim como Dino, Eugênia citou a comoção gerada pelo filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que conta a história da viúva de Rubens Paiva, engenheiro assassinado pela ditadura em 1971.
“A comoção geral com o filme e esse tipo de decisão [de Dino], espero que contribuam para quem tem informação se sinta mais confiante e sensibilizado de vir falar verdade”, disse Eugênia.
Para ela, diante dos casos mais recente de movimentos antidemocráticos, os ministros podem ter mudado de posicionamento desde o julgamento de 2010 -quando, por 7 votos a 2, a maioria do Supremo rejeitou revisar a Lei da Anistia. Houve recurso com base em leis internacionais, e o tema está parado.
“Tudo que aconteceu nos últimos anos demonstra cabalmente que a falta de justiça de transição no país contribuiu muito para o que aconteceu agora, volta da ditadura, quebra da legalidade. Os agentes violentos de hoje se miram nos exemplos do passado que vão continuar impunes”, disse.
A presidente da Comissão da Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, também elogiou a decisão do magistrado, mas amplia a cobrança ao Judiciário. Para ela, a determinação foi acertada, mas o STF tem “oportunidade única” neste momento e não pode desperdiçá-la.
“Juntando a decisão do ministro Dino com a afirmação recente do ministro Barroso, de que as Forças Armadas já deviam ter pedido perdão à sociedade brasileira pela participação no golpe de 64 e ditadura que se seguiu, acredito que o STF tem uma oportunidade única de reafirmar a nossa Constituição”, disse Eneá à reportagem, ao defender que a Lei da Anistia não contempla torturadores.
Para ela, é preciso “acertar as contas com o passado autoritário” e responsabilização no campo penal de todos os golpistas, “de ontem e de hoje”.
Defende também que a lei não é de “autoanistia” e que quem cometeu crime deve ainda ser responsabilizado no campo penal. Para isso, o STF precisaria retomar o julgamento de 2010 sobre a Lei da Anistia.
A postura adotada pelo Judiciário sobre o alcance da Lei da Anistia pode sofrer uma mudança considerável caso o entendimento do ministro Flávio Dino seja acompanhado pelo conjunto do Supremo.
Essa ação começou em 2015. O Ministério Público Federal apresentou uma denúncia à Justiça Federal no Pará contra os tenentes-coronéis do Exército Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura.
Eles são acusados pelos crimes de homicídio qualificado e ocultação de cadáver cometidos durante a Guerrilha do Araguaia.
Procurado sobre a decisão de Dino, o Exército não quis comentar. “O Centro de Comunicação Social do Exército esclarece que a Força não se manifesta a respeito de decisões emitidas por outros órgãos, pois esse é o procedimento que tem pautado a relação de respeito do Exército Brasileiro com as demais instituições da República”.