SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dalton Trevisan parecia que não ia morrer nunca. O planejamento das celebrações de seu centenário, em junho de 2025, já estava em curso, inclusive com o anúncio de que sua obra passará a ser publicada pela editora Todavia, e é fácil imaginá-lo escondido, nas sombras, debochando das homenagens que lhe seriam prestadas.
Fazendo jus ao epíteto de “vampiro de Curitiba”, Trevisan sobreviveu a tudo: aos amigos de geração, aos irmãos, à mulher, às duas filhas -Rosana, a caçula, morreu no ano passado. O vaivém de notícias sobre sua morte na noite de segunda (9) e a dificuldade para confirmá-la davam a impressão de que tudo não passava de uma piada mórbida, como Dalton tanto gostava.
Futuros biógrafos terão a partir de agora bastante trabalho para lançar luz sobre o mais recluso e excêntrico dos grandes escritores brasileiros. As histórias a respeito dele são tão abundantes quanto seus contos -e podem levar ao desespero os que buscam algum fio de verdade.
Em 2015, pouco antes dos 90 anos do escritor, a reportagem da Folha de S.Paulo esteve em Curitiba e experimentou a estranha sensação de penetrar no universo daltoniano. “Ele está arisco, sabe que vocês preparam matéria”, alertou um amigo.
O escritor ainda vivia no lúgubre casarão, bastante deteriorado, na rua Ubaldino do Amaral. Ao lado funcionou por algum tempo uma sauna gay. Numa manhã fria, ele saiu de casa pouco depois das 10h, como alguns amigos haviam dito.
Trevisan aparenta bem menos que os 90 anos que faria uns dias depois. Era um senhor de estatura mediana, magro, de pele clara e cabelos brancos.
Naquele dia usava boné, jaqueta, calça jeans e tênis. Andava rápido, passos vigorosos, sempre olhando para o chão, como a desencorajar qualquer contato. A reportagem arriscou uma aproximação, que Trevisan rechaçou de cara.
“Não sou Dalton”, disse com firmeza. “Já sei que você estava assediando meus amigos. Me deixe em paz”, desconversou. Após uma última insistência, arrematou, inspirando uma pavor vampiresco. “Não faço aniversário. E não falo. Está mais do que dito que eu não quero falar de nada”.
Alguns amigos mais próximos foram tão ariscos como ele. Um código severo regia suas relações pessoais: qualquer confidências a estranhos podia provocar o rompimento da amizade.
“O Dalton estabeleceu criteriosamente que a gente não pode fazer qualquer referência a ele. Uma vez me desviei um pouco e me arrependi profundamente. Ele ficou muito bravo”, disse Hilton Trevisan, seu irmão, então com 92.
De modo geral, contudo, pareciam pouco saber a respeito do recluso escritor, mesmo em questões mais básicas, como nome e idade de suas filhas.
Parentes de sua mulher, Yole, que morreu em 1998, tiveram pouco contato com ele e disseram que o “casamento havia sido difícil”. Yole era tia de Gustavo Fruet, ex-prefeito de Curitiba.
Rosana, filha ainda viva em 2015, não aceitou dar uma entrevista formal à Folha de S.Paulo. Reiterou a admiração pelo pai, mas confirmou que não eram próximos. “Ele vive no mundo dele, na própria imaginação, que é muito rica. É a vida que ele escolheu.”
Dalton teria tido mais afinidade com a filha mais velha, Isabel, mas ainda assim, segundo uma reportagem da revista Veja de 1979, não foi ao casamento dela. Isabel morreu jovem, com menos de 40 anos, de câncer, mesma doença que vitimou a mãe.
Embora sempre cioso de sua privacidade, Trevisan demonstrava imenso interesse em escarafunchar a vida alheia. Rubem Braga costumava dizer que ele obrigava os funcionários da fábrica de vidro de sua família a meia hora de serão diário para que lhe contassem suas aventuras cotidianas. Talvez fosse uma pilhéria entre amigos, mas o comentário do cronista capixaba não estava longe da realidade.
O jornalista Carlos Alberto Pessôa relatou à Folha de S.Paulo, também em 2015, um desses encontros em que o vampiro sugava as histórias dos amigos. “A gente se reunia nas cafeterias, e ele fazia uma série de perguntas sobre passagens das nossas vidas, nossos amores e trabalhos. Eu também contava histórias de outras pessoas para ele, casos que vi na rua. Depois ele dava uma ‘daltonizada’ e transformava tudo em conto. Ainda hoje ele tem diversos informantes que fornecem histórias dos tipos marginais de Curitiba”, afirmou.
Em uma rara entrevista que concedeu em 1968 ao jornalista e escritor Luiz Vilela, publicada no Jornal da Tarde, Trevisan declarou que todo “escritor é um monstro moral”.
“O escritor é uma pessoa que não merece nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora. Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito”, afirmou.
Em cartas aos amigos, contudo, era muito menos tenebroso, quase doce, podemos dizer, como nesta a Antonio Callado, de dezembro de 1994, em que relembra outros companheiros de letras, recuperada pela Folha de S.Paulo em matéria sobre a correspondência do escritor:
“Callado, meu caro. Obrigadinho pelas palavras doces e generosas. Bem me lembro, ahimé, de como éramos jovens e tanto nos queríamos. Pascaliano ou dannunziano, esporrento e lírico, o nosso Helio era um alexandrino em marcha. Você, o único escritor inglês do Brasil, sereno e lúcido entre a multidão ululante de bárbaros. E o grande e querido Otto, coruscante e iluminado, de todos o mais generoso, uma infinita paciência comigo, o Autran, o Nelson e quantos mais! até alcançar afinal a santidade, outro Simão Cireneu na agonia do Rubem. Maior obra literária decerto realizaria, não se tivesse doado tanto com tanta paixão a tantos.”
No final dos anos 1960, Trevisan já tinha sua reputação estabelecida como um dos principais contistas brasileiros. E até mesmo mais que isso -a revista Realidade de agosto de 1968 dizia que era um dos melhores do mundo.
Nas décadas seguintes, seguiu publicando com impressionante regularidade, lapidando seu estilo a cada livro. Tramas e personagens eram retomados e retrabalhados inúmeras vezes, com transformações não raro significativas em relação à primeira versão. As histórias ficaram cada vez menores -muitas vezes limitadas a uma única cena, a um único parágrafo, às vezes a uma única frase.
Em crítica na Folha de S.Paulo a respeito do livro “Dinorá” (1994), mas que pode ser replicado a inúmeros outros de Trevisan, a professora Berta Waldman afirmou que os contos ali reunidos estão lançados numa “espiral de situações repetidas, de personagens dobradas, de acontecimentos reproduzidos, ecos de uma escrita fechada feita de avanços e recuos, de autocitação”.
E completou: “Essa observação, entretanto, conduz a um paradoxo, porque, se a matéria comentada é infinita na sua circularidade, a forma do comentário é singelamente finita e concisa. (…) os contos de Trevisan encontram na alegoria a solução formal para esse paradoxo. Aí, o vampiro e Curitiba são, antes de tudo, formas de contar a sociedade liberal de arremedo que o chamado capitalismo tardiamente avançado produziu no Brasil”.
Partindo da literatura para a música, essa repetição infinitiva de temas, formas e repertórios, essa busca obsessiva pela forma mais perfeita e mais sucinta, que marcaram as décadas finais da produção de Trevisan, batalhas travadas em total isolamento ao mundo exterior, fazem pensar em João Gilberto.
Difícil imaginar dois artistas mais excêntricos, ambos quase devorados pelo folclore que os circundava. Mas se João parecia encontrar no lirismo da bossa nova um escape para os tormentos de sua personalidade, Trevisan chafurdou seus contos na lama do comportamento humano.
Dono de estilo único, enganosamente simples e deliciosamente coloquial, descreveu a sordidez, as taras sexuais, o sadismo, a miséria moral em que todos podemos nos reconhecer. Em tempos de “bom mocismo” tomado como valor artístico, é um alento saber que o doce Vampiro de Curitiba vai sempre nos assombrar.