SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Gigante na construção de narrativas breves e tido como um dos principais contistas brasileiros de todos os tempos, o escritor Dalton Trevisan morreu na noite desta segunda (9/12) em sua Curitiba natal.
Estava em sua residência no centro da capital paranaense. Tinha 99 anos e, embora a causa da morte não tenha sido divulgada, presume-se que sucumbiu a complicações da idade. Não constava que estivesse doente. Ao contrário, continuava trabalhando como sempre, e sua extensa obra -mais de 50 títulos publicados ao longo de quase 80 anos- acabou de mudar de editora.
Depois de décadas na editora Record, os livros de Dalton, anunciou-se em novembro passado, passarão a sair pela editora Todavia no ano que vem, coincidindo com o centenário do escritor.
Na ocasião, a agente de Dalton, Fabiana Faversani, contou ao jornal Plural que o autor estava revendo contos para as novas edições -mantendo viva até o fim a obsessão que era uma das marcas do seu trabalho.
“Ele está compulsivamente refazendo as emendas desde que começamos a negociar a mudança de editora. Só do conto ‘Noite’, foram quatro ou cinco alterações na última semana. Presentinho para bons leitores-detetives”, comentou.
Dalton Jerson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925, em uma família de classe média alta. O pai dele era proprietário de uma fábrica de vidros e louças, onde Dalton -formado em direito pela Universidade Federal do Paraná, mas que pouco exerceria a profissão- trabalhou. Também foi repórter policial e crítico de cinema.
Publicou seu primeiro livro, “Sonata ao Luar”, em 1945, mas o renegaria por quase toda a vida, assim como seu segundo título, “Sete Anos de Pastor”, de 1948. Numa reviravolta típica do personagem surpreendente que era, em 2023 reeditou “Sonata ao Luar” numa plaquete (edição artesanal). Além da vasta produção comercial, costumava publicar títulos em pequenas tiragens independentes, que distribuía a amigos sortudos.
Em 1946, Dalton foi um dos fundadores da revista modernista “Joaquim”, que circulou até 1948, teve colaboração de nomes como Drummond, Mário de Andrade e Antonio Candido -referências de juventude com as quais ele se correspondia- e causou rebuliço na sociedade curitibana por seu vanguardismo e iconoclastia.
A “Joaquim” caçoava do beletrismo bacharelesco da cultura provinciana da cidade e se contrapunha ao paranismo, movimento surgido nos anos 1920 de valorização de uma identidade própria em contraposição à influência do eixo Rio-São Paulo e de outras regiões do país.
O título que marca sua estreia no circuito comercial, e começa a chamar a atenção dos críticos, é “Novelas Nada Exemplares”, de 1959. É tido até hoje como um dos seus maiores livros, ao lado de “A Guerra Conjugal” (1969), “Cemitério de Elefantes” (1964), “O Vampiro de Curitiba” (1965) e “A Polaquinha” (1985).
Dalton revigorou o universo urbano na literatura brasileira, criando uma linguagem e um cenário profundamente originais, a partir de suas referências curitibanas. Sua obra é povoada por disfunções familiares, conflitos amorosos, traições, violência, taras e fetiches, em que sexo e crime ou são a matéria principal ou estão sempre à espreita.
Tanto ou mais que as inovações temáticas, destaca-se sua revolução estética, marcada por uma concisão de escultor e por um léxico próprio, repleto de neologismos (alguns batizavam contos e livros, como “Desgracida”), diminutivos e chistes ortográficos mil.
Criava, por exemplo, metáforas a um só tempo meigas e cafajestes para designar as partes íntimas: o pênis se transmutava em “flauta de mel” ou “ferrão de fogo”; o clitóris, em “pérola da concha bivalve”.
Essa pena despudorada era também um dos autores mais reclusos da literatura brasileira. Recusava entrevistas, deplorava eventos literários e exposição em geral. Mas, como testemunharam vários de seus amigos e interlocutores, era um ser solar, divertido e amoroso -mais solitude que solidão-, que adorava flanar anônimo, boné sempre enterrado na cabeça, pelas ruas de sua cidade.
A reclusão contribuiu para que fosse apelidado de “O Vampiro de Curitiba”, título de seu livro de 1965, que reúne 15 contos protagonizados pelo dito-cujo -Nelsinho, espécie de pervertido sexual obcecado sobretudo por por virgens.
Quando Dalton completou 90 anos, um repórter da Folha tentou abordá-lo em Curitiba, uma de muitas tentativas infrutíferas empreendidas por jornalistas ao longo de décadas.
“Dalton Trevisan, com licença”. Sem parar de andar, o escritor respondeu: “Não sou Dalton”. Era ele, claro, e ouviu um pedido de entrevista. “Já sei que você estava assediando meus amigos. Me deixe em paz. Não faço aniversário. E não falo. Está mais do que dito que eu não quero falar de nada”.
Dalton foi casado por mais de 40 anos com Yole Maria Bonato Trevisan, com quem teve duas filhas, Isabel e Rosana -as três já morreram.
O “Vampiro” sai de cena quatro anos depois que outros dois mestres do conto brasileiro, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, deixando uma lacuna e um desafio para os herdeiros das narrativas breves na literatura nacional.
Consagrado pela crítica, venceu os principais prêmios literários do país (Jabuti, Portugal Telecom, APCA, Machado de Assis), além do Camões (o maior em língua portuguesa, pelo conjunto da obra). Não apareceu para receber nenhum deles.