PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Nesta sexta-feira (17), a França comemora 50 anos da promulgação da lei que garantiu o direito ao aborto.
No ano passado, os franceses foram um passo além e inscreveram esse direito na Constituição. Mas uma das últimas testemunhas daquela luta das feministas francesas, Claudine Monteil, lembra uma frase de sua mentora, Simone de Beauvoir: “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que nossos direitos sejam questionados. É preciso continuar vigilante a vida inteira”.
Monteil, 75, foi amiga íntima de Beauvoir durante 16 anos. Até a morte da pensadora francesa, aos 78 anos, em 1986, visitava-a quase todos os domingos, quando a filósofa reunia feministas para discutir política. Escreveu seis livros sobre a sua mentora, além de artigos e ensaios.
Monteil foi a mais jovem signatária do famoso “Manifesto das 343”, redigido por Beauvoir e publicado em 1971 pela revista francesa Le Nouvel Observateur.
Nele, francesas famosas, incluindo as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, a cineasta Agnès Varda e as escritoras Marguerite Duras e Françoise Sagan, afirmavam já ter abortado. “Mas também assinaram desconhecidas, que abortaram em condições horrendas, em mesas de cozinha, e ficaram com sequelas pelo resto da vida”, conta.
À época com 21 anos, Monteil precisou explicar aos pais que não tinha abortado -a assinatura era só uma forma de demonstrar apoio à causa. A revista, cujo exemplar amarrotado ela até hoje exibe com orgulho, revelou-se decisiva na campanha pela legalização do aborto.
Ex-diplomata, Monteil hoje é presidente da associação feminista Femmes Monde, conselheira da Comissão Nacional Francesa da Unesco, agência da ONU para a cultura, e biógrafa de mulheres pioneiras.
Lançou no Brasil, recentemente, “Marie Curie e Suas Filhas” (editora L&PM), sobre a vida da Nobel de Física (1903) e Química (1911) e suas filhas Irène (também Nobel de Química, em 1935) e Eve (que fez parte da resistência ao nazismo).
Ela recebeu a reportagem em sua casa -em um domingo, como Simone de Beauvoir fazia com ela própria.
PERGUNTA – Como foi a luta até o direito ao aborto virar lei, em 1975?
CLAUDINE MONTEIL – De 1970 a 1975, foi uma luta constante. Quer dizer, o direito ao aborto não foi conquistado simplesmente por um milagre, por um projeto de lei apresentado por Simone Veil. Isso é mentira. Não é a verdade histórica. A verdade histórica são cinco anos de luta permanente para chegar lá. Primeiro para que se falasse sobre isso, depois para denunciar as condições e, acima de tudo, para mudar a opinião pública, que era contra o aborto. Éramos ridicularizadas na mídia.
P – E como ocorreu a mudança?
CM – Tudo começou quando o presidente Georges Pompidou morreu, em abril de 1974. A questão colocada à opinião pública, dias antes da eleição presidencial, foi: “Em quem vocês vão votar?”. E os jovens, principalmente, mas os não tão jovens também, disseram: “Em alguém que mude a lei sobre o aborto e a torne mais humana”. E os candidatos Valéry Giscard d’Estaing e François Mitterrand se comprometeram a mudar a lei.
P – Qual foi a reação de Simone de Beauvoir à lei de 1975?
CM – Cheguei à casa dela, porque eu a via toda semana, e disse: “Simone, nós ganhamos!”. Ela ficou impassível e me disse algo que devemos lembrar a vida inteira: “Não, Claudine, não vencemos. Bastará uma crise política, econômica ou religiosa para que nossos direitos sejam questionados”.
P – Como a sra. viu a inclusão do direito ao aborto na Constituição francesa, em 2024?
CM – O melhor dos jovens é que eles foram além dos nossos sonhos. Quando me disseram: “Claudine, vamos conseguir que o aborto seja inscrito na Constituição”, minha primeira reação foi: “Vocês nunca chegarão lá. Vão conseguir com os deputados, mas, como os senadores são reacionários, não no Senado”. Só que as filhas e os filhos dos senadores disseram aos pais que não falariam mais com eles se votassem contra.
P – A sra. diz que as feministas precisam usar as redes sociais. Por quê?
CM – Não podemos deixar as redes para os racistas e fascistas. Eu digo às jovens feministas: é preciso ocupar as redes sociais. Porque mesmo que sejam insultadas, ainda assim estarão enviando uma mensagem de solidariedade e conseguindo pressionar em favor dos direitos das mulheres. Somos muito poucas no X e isso é um grande erro. Digo a elas que são as redes, como o X, que de fato controlam a opinião pública e influenciam os jornalistas.
P – No Brasil, hoje, há grupos de mulheres antifeministas nas redes sociais. Como a sra. vê isso?
CM – A história não é linear. Para avançar nos direitos, na justiça e na liberdade, você sempre terá inimigos e obstáculos apoiados por lobbies muito poderosos e com meios financeiros consideráveis.
P – Como acha que Simone de Beauvoir usaria as redes sociais?
CM – Acho que ela seria muito dinâmica e falaria o que costumava me falar, ou seja: os perigos da religião, das multinacionais e das oligarquias. E o fato de que o planeta não está indo bem.
Mas acho que ela seria muito criticada por sua franqueza e sua oposição aos conservadorismos de todo tipo. Ela não poderia falar na França agora da mesma maneira.
P- A sra. é otimista em relação ao futuro?
CM – Sou otimista porque vejo as novas gerações. Simone de Beauvoir depositou sua confiança na nossa geração. Ela entendeu que estávamos indo mais longe do que o que ela havia escrito em “O Segundo Sexo”. Pois bem, eu tenho confiança na geração mais jovem. Sou madrinha de uma associação de feministas, trabalho muito com as jovens feministas. Estou aqui para apoiá-las. Porque elas querem ir mais longe do que nós.
P – Como vê a relação entre a ultraesquerda e o feminismo hoje?
CM – Há muitas coisas na extrema esquerda que são incompatíveis [com o feminismo]. Mas atenção, não a estou condenando, porque a extrema esquerda lutou no Senado e na Assembleia Nacional para que o aborto fosse inscrito na Constituição. Portanto, fez seu trabalho. Mas é muito tolerante com o conservadorismo religioso.
P – O que acha do movimento MeToo?
CM – É uma revolução extraordinária. Eu gostaria de saudar a coragem das mulheres que ousaram fazer o MeToo. Acho magnífico. Porque você arrisca sua vida fazendo isso. Há mulheres que fizeram o MeToo em certos países e tiveram de se esconder, contratar guarda-costas.
P – Como viu o caso de Gisèle Pelicot, a francesa dopada pelo marido e estuprada por dezenas de homens?
CM – Gostaria de prestar uma homenagem a essa mulher, que quis que o julgamento fosse público. Ela é uma heroína, atacada todos os dias com violência. Isso mostra a banalização do estupro e da violência contra as mulheres. Gisèle Pelicot é uma inspiração para as mulheres do mundo inteiro.