Compartilhe

WhatsApp
Facebook
Telegram

Teatro em 2024 tem onda de peças com globais e celebra a atriz Fernanda Montenegro

RIO DE JANEIRO, RJ E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Agora que ninguém tem mais contrato fixo, todo mundo diz ‘o teatro é minha casa’, o teatro está dentro de mim, nunca saí daqui’. Eu falo assim ‘pô, vocês estavam onde que eu não encontrava vocês?’". A pergunta

RIO DE JANEIRO, RJ E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Agora que ninguém tem mais contrato fixo, todo mundo diz ‘o teatro é minha casa’, o teatro está dentro de mim, nunca saí daqui’. Eu falo assim ‘pô, vocês estavam onde que eu não encontrava vocês?’”. A pergunta foi feita pelo ator e diretor Elias Andreato, numa entrevista, em agosto, por ocasião da estreia da peça “Memórias do Vinho”, com Herson Capri e Caio Blat. Em sua fala, Andreato atinava para uma tendência consolidada, neste ano, na cena teatral brasileira.

Em 2024, as salas de espetáculo se tornaram um lugar de redenção para artistas, que tinham os seus desejos artísticos atrelados ao calendário das produções da TV Globo, entre novelas e séries. Como a emissora seguindo encerrando os tradicionais contratos fixos com seu elenco, os artistas rumaram para os palcos, onde muitos aprenderam os urdimentos do ofício.

Por um lado, a tendência aumentou um fenômeno antigo: o teatro de celebridades, peças ancoradas na fama de atores. Por outro, constatou-se a presença genuína de profissionais que tiveram a carreira determinada pela arte teatral, voltando à ribalta.

É o caso de Antônio Fagundes e Christiane Torloni, que passaram a contracenar, a partir de setembro, como marido e mulher, na peça “Dois de Nós”. “A TV não é mais aquela de antigamente, que tinha um cartel de artistas contratados e que se apresentavam novela após novela. Onde esses artistas estão agora? Estão no teatro. Acredito que seja também uma busca por eles que faz o público sair de casa”, disse Torloni. Na comédia, dois casais de gerações diferentes se encontram num quarto de hotel, onde são revelados seus segredos mais recônditos. O espetáculo segue em cartaz no Tuca, em São Paulo, em 2025.

Como se tornou frequente, a abundância de monólogos na programação abarcou uma diversidade de gêneros. Os dois destaques, de todo modo, têm teor político. Logo no início do ano, Andrea Beltrão encarnou a advogada pernambucana Mércia Albuquerque, em “Lady Tempestade”, escrita por Silvia Gomez e dirigida por Yara de Novaes. Apresentado no Teatro Poeira, em Botafogo, na zona sul carioca, e mantido por Beltrão e sua amiga, a também atriz Marieta Severo, o espetáculo resgatou a história de uma defensora de presos políticos, durante a ditadura militar. Um ano depois da estreia, “Lady Tempestade” retorna, em janeiro, ao Poeira.

“A gente não caminhou no Brasil, e isso passa pela ausência de reparação”, afirmou a atriz. “Não fomos ao tribunal e não punimos quem matou e quem torturou.” Também dirigida por Novaes, a atriz Débora Falabella deu vida ao texto de “Prima Facie”, escrito pela australiana Suzie Miller, que impressionou as plateias do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde já tem data para uma nova temporada, no Teatro Vivo, em fevereiro do ano que vem.

O tema é a violência contra mulher. Falabella vive a também advogada Tessa, que tem, entre seus clientes, acusados de agressão sexual. Tessa entra em crise ao rever os seus princípios éticos.

Na seara dos musicais, Cláudia Raia mobilizou o público do gênero com a megaprodução de “Tarsila, a Brasileira”, que rodou o país. Ao repassar a história de vida da maior pintora do país, com texto e letras originais, a atriz afirmou ter contribuído para o surgimento de um musical mais brasileiro, e menos dependente dos códigos da Broadway.

Em cena, contracenou com seu marido, Jarbas Homem de Mello, que foi Oswald de Andrade. Na ocasião, Raia voltou a defender as leis de incentivo à Cultura, em especial a Lei Rouanet, sem a qual, diz ela, seria impossível entrar em cena.

Num contraponto, textos clássicos também tiveram espaço garantido na cena, sobretudo pela atuação do Grupo Tapa. A tradicional companhia, liderada pelo diretor Eduardo Tolentino, montou “Tio Vânia”, do dramaturgo russo Tchékhov. Ali, o espectador pôde se deparar com raridades, nos dias atuais: elenco numeroso, vozes projetadas sem uso de microfone, espetáculo com mais de uma hora de duração. Em suma, requisitos para que a obra pudesse ganhar a sua dimensão filosófica, como a boa literatura russa, sem perder a ironia e certa leveza, atribuída pelas canções.

“Existe uma coisa chamada Projac que criou um fenômeno de peças de celebridades. A primeira coisa que te perguntam lá é qual é o global no elenco. Se você não tiver um global, não consegue divulgar”, afirmou Tolentino. “O Projac é um projeto ideológico.” A vocação à diversidade de temas da cena paulistana foi sintetizada, em março, durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp.

Ao questionar o que é teatro, a mostra, com atrações de países como Síria, Coreia do Sul e África do Sul, realçou a última peça da Ultralíricos, companhia brasileira liderada por Felipe Hirsch. Em uma sequência de jogos dramáticos, o diretor abordou a inutilidade da arte, irritando o público mais tradicional, em alguns momentos. Num deles, o ator Danilo Grangheia repetia, por infinitas vezes, a mesma frase. A cena era, de fato, perturbadora. Noutra esquete, Hirsch elogiou o nonsense ao homenagear uma das passagens mais célebres de “Bang Bang”, filme rodado em 1971 pelo diretor Andrea Tonacci.

Em “Fantasmagoria IV”, o teatro teve a função de suscitar paixões. Como mostrou a uma reportagem da Folha, a representação teatral tem uma ligação com a teoria da psicanálise. Neste ano, o público lotou as salas, que traziam peças com a temática, como “A Última Sessão de Freud”, “Freud e o Visitante”, “Sra. Klein” e “Homens no Divã”. “O espectador vê em cena os crimes que gostaria de cometer”, disse o psicanalista Antonio Quinet. “Teatro e análise são duas maneiras de pôr em cena o inconsciente.”

O ano consagrou ainda duas personagens centrais do teatro brasileiro. Fernanda Montenegro, de 94 anos, voltou aos palcos com a sua leitura da obra da filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir. As apresentações, sempre lotadas, culminaram numa leitura histórica, realizada para 15 mil pessoas, no Auditório do Ibirapuera. Um momento apoteótico condizente com a trajetória de Fernanda, que descobriu em “A Cerimônia de Adeus”, um livro de eterno retorno.

“O ano 2024 é já de muitos compromissos de trabalho. A propósito dos meus 95 anos chegando, repito, como lema, é com muita coragem que ainda estou aqui”, disse Fernanda, antes de estrear a leitura. Por fim, Nathalia Timberg, antiga companheira sua dos tempos do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, foi homenageada ao trabalhar em “A Mulher da Van”, texto do autor inglês Alan Bennett, com direção de Ricardo Grasson. Timberg interpretou Mary Sheperd, moribunda que atrapalha a vizinhança de um bairro, em londres. Ela afirmou ser a sua última peça de sua carreira.

“Diante de estar atingindo quase o centenário, percebo o mundo de forma cada vez mais ampla e profunda. A idade avançada me dá a percepção de quanto tempo a mais eu precisaria para abranger tudo o que pressinto, tudo o que gostaria de perceber melhor”, contou Timberg.” Se a vida é um enigma em si, você ter consciência de estar vivendo esse enigma já é um enriquecimento enorme.”